sábado, 4 de maio de 2013

Uma Anomalia Mundial...A Fome


A fome é, conforme tantas vezes tenho afirmado, a expressão biológica de males sociológicos.
Está intimamente ligada com as distorsões econômicas, com a designação de "subdesenvolvimento".

A fome é um fenômeno geograficamente universal, e cuja ação nefasta, nenhum continente escapa.
Toda a terra dos homens foi, até hoje, a terra da fome.
As investigações científicas, realizadas em todas as partes do mundo,constataram o fato inconcebível de que dois terços da humanidade sofre, de maneira epidêmica ou endêmica, os efeitos destruidores da fome. 

A fome não é um produto da superpopulação: a fome já existia em massaantes do fenômeno da explosão demográfica do após-guerra.
Apenas esta fome que dizimava as populações do Terceiro Mundo era escamoteada, era abafada era escondida.


Não se falava do assunto que era vergonhoso: a fome era tabu.
No mangue, tudo é, foi ou será caranguejo, inclusive o homem e a lama.
Não foi na Sorbonne, nem em qualquer outra universidade sábia que travei conhecimento com o fenômeno da fome.
A fome se revelou espontaneamente aos meus olhos nos mangues do Capiberibe, nos bairros
miseráveis do Recife - Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha do Leite.
Esta foi a minha Sorbonne.

A lama dos mangues de Recife, fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejo.
São seres anfibios - habitantes da terra e da água, meio homens e meio bichos.
Alimentados na infância com caldo de caranguejo - este leite de lama, se faziam irmãos de leite dos caranguejos.

Cedo me dei conta desse estranho mimetismo: os homens se assemelhando em tudo aos caranguejos.
Arrastando-se, acachapando-se como caranguejos para poderem sobreviver.
A impressão que eu tinha, era de que os habitantes dos mangues - homens e caranguejos nascidos à beira do rio - à medida que iam crescendo, iam cada vez se atolando mais na lama.

Foi assim que senti formigar dentro de mim a terrível descoberta da fome.
Pensei a princípio que era um triste privilégio desta área onde eu vivo - a área dos mangues.
Depois verifiquei que, no cenário de fome do Nordeste,os mangues eram uma verdadeira terra da promissão, que atraía homens vindos de outras áreas de mais fome ainda - das áreas da seca e da monocultura da cana-de-açúcar, onde a indústria açucareira esmagava,
com a mesma indiferença, a cana e o homem, reduzindo tudo a bagaço. 

Vê-los agir, falar, lutar, viver e morrer, era ver a própria fome modelando com suas despóticas mãos de ferro, os heróis do maior drama da humanidade - o drama da fome.
E foi assim que, pelas história dos homens e pelo roteiro do rio, fiquei sabendo que a fome não era um produto exclusivo dos mangues.
Que os mangues apenas atraíram os homens famintos do Nordeste: os da zona da seca e os da zona da cana.

Todos atraídos por esta terra de promissão, vindo se aninhar naquele ninho de lama, construído pelos dois e onde brota o maravilhoso ciclo do caranguejo.

 E quando cresci e saí pelo mundo afora, vendo outras paisagens, me apercebi com nova surpresa queo que eu pensava ser um fenômeno local, era um drama universal.

Que a paisagem humana dos mangues se reproduzia no mundo inteiro.
Que aqueles personagens da lama do Recife eram idênticos aos personagens de inúmeras outras áreas do mundo assolados pela fome.

Que aquela lama humana do Recife, que eu conhecera na infância, continua sujando até hoje toda a paisagem de nosso planeta como negros borrões de miséria: as negras manchas
demográficas da geografia da fome.

O assunto é bastante delicado e perigoso.
A tal ponto delicado e perigoso que se constituiu num dos tabus de nossa civilização.
É realmente estranho, chocante o fato de que, num mundo como o nosso, caracterizado por tão excessiva capacidade de escrever-se e publicar-se, haja até hoje tão pouca coisa escrita acerca do fenômeno da fome, em suas diferentes manifestações.

Quais são os fatores ocultos desta verdadeira conspiração de silêncio em torno da fome?
Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tomaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável de ser abordado publicamente.
Ao lado dos preconceitos morais, os interesses econômicos das minorias dominantes também trabalhavam para escamotear o fenômeno da fome do panorama espiritual moderno.

É que ao imperialismo econômico e ao comércio internacional a serviço do mesmo interessava que  a se processar indefinidamente como fenômenos exclusivamente econômicos - dirigidos e estimulados dentro de seus interesses econômicos - e não como
fatos intimamente ligados aos interesses da saúde pública.

Um dos grandes obstáculos ao planejamento de soluções adequadas ao problema da alimentação dos povos reside exatamente no pouco conhecimento que se tem do problema em conjunto, como um complexo de manifestações simultaneamente biológicas, econômicas
 e sociais. 

Por outras palavras, procuraremos realizar uma sondagem de natureza ecológica, dentro deste conceito tão fecundo de Ecologia, ou seja, do estudo das ações e reações dos seres vivos diante das influências do meio.

Neste ensaio de natureza ecológica tentaremos, pois, analisar os hábitos alimentares dos diferentes grupos humanos ligados a determinadas áreas geográficas, procurando de um lado, descobrir as causas naturais e as causas sociais que condicionaram o seu tipo de alimentação, com suas falhas e defeitos característicos, e de outro lado, procurando verificar até onde esses defeitos influenciam a estrutura econômico-social dos diferentes grupos estudados.

O objetivo é analisar o fenômeno da fome coletiva - da fome atingindo endêmica ou epidemicamente as grandes massas humanas.




Não só a fome total, a verdadeira inanição que os povos de língua inglesa chamam de starvation, fenômeno, em geral, limitado a áreas de extrema miséria e a contingências
 excepcionais, como o fenômeno muito mais freqüente e mais grave, em suas consequências
numéricas, da fome parcial, da chamada fome oculta, na qual pela falta permanente de determinados elementos nutritivos,em seus regimes habituais, grupos inteiros de populações se deixam morrer lentamente de fome,apesar de comerem todos os dias.


É principalmente o estudo dessas coletivas fomes parciais, dessas fomes específicas, em sua infinita variedade, que constitui o objetivo nuclear do nosso trabalho.
É que existem duas maneiras de morrer de fome: não comer nada e definhar de maneira vertiginosa até o fim, ou comer de maneira inadequada e entrar em um regime de carências
 ou deficiências específicas, capaz de provocar um estado que pode também conduzir à morte.
Mais grave ainda que a fome aguda e total, devido às suas repercussões sociais e econômicas, é o fenômeno da fome crônica ou parcial, que corrói silenciosamente inúmeras populações do mundo.

A noção que se tem, correntemente, do que seja a fome é, assim, uma noção bem incompleta.
E este deconhecimento, por parte das elites européias, da realidade social da fome no mundo e dos perigos que este fenômeno representa para a sua estabilidade social, constitui uma grave lacuna tanto para a análise dos acontecimentos políticos da atualidade, que se produzem em diversas regiões da terra, como no que se refere à atitude que os países da abundância deveriam ter face aos países subdesenvolvidos, permanentemente perseguidos pela penúria miséria alimentar.


Nenhum fator é mais negativo para a situação de abastecimento alimentar do país do que a sua estrutura agrária feudal, com um regime inadequado de propriedade, com relações de
trabalho socialmente superadas e com a não utilização da riqueza potencial dos solos.


Apresenta-se deste modo a Reforma Agrária como uma necessidade histórica nesta hora de
transformação social que atravessamos como um imperativo nacional.
É que cerca de 60% das propriedades agrícolas no Brasil são constituídas por glebas de áreas superiores a 50 hectares de terra, das quais 20% possuem mais de 10.000 hectares.
No recenseamento de 1950 ficou evidenciada a existência no Brasil de algumas dezenas de propriedades que são verdadeiras capitanias feudais: proriedades com mais de 100.000 hectares de extensão.

Do latifúndio decorre também a existência das grandes massas dos semterra, dos que trabalham na terra alheia, como assalariados ou como servos explorados por esta engrenagem econômica de tipo feudal.

Por sua vez, o minifúndio significa a exploração antieconômica da terra, a miséria crônica
das culturas de subsistência que não dão para matar a fome da família.
O tipo de reforma que julgamos imperativo da hora presente não é um simples expediente de desapropriação e redistribuição da terra para atender às aspirações dos sem-terra.

Processo simplista que não traz solução real aos problemas da economia agrária.
Concebemos a reforma agrária como um processo de revisão das relações jurídicas e econômicas, entre os que detêma propriedade agrícola e os que trabalham nas atividades rurais.

Precisamos enfrentar o tabu da reforma agrária - assunto proibido, escabroso, perigoso - com a mesma coragem com que enfrentamos o tabu da fome.

Falaremos abertamente do assunto, esvaziando desta forma o seu conteúdo tabu, mostrando através de uma larga campanha esclarecedora que a reforma agrária não é nenhum bicho-papão ou dragão maléfico que vá engolir toda a riqueza dos proprietários de terra, como pensam os malavisados, mas que, ao contrário, será extremamente benéfica para todos os que participam socialmente da exploração agrícola...


É evidente que não bastaria dispor de alimentos em quantidade suficiente e suficientemente diversificados para cobrir as necessidades alimentares da população mundial.
O problema da fome não é apenas um problema de produção insuficiente de alimentos.
É preciso que a massa desta população disponha de poder de compra para adquirir estes alimentos.
A fome age não apenas sobre os corpos das vítimas da seca, consumindo sua carne, corroendo seus órgãos e abrindo feridas em sua pele, mas também age sobre seu espírito, sobre sua estrutura mental,sobre sua conduta moral.


Nenhuma calamidade pode desagregar a personalidade humana tão profundamente e num sentido tão nocivo quanto a fome, quando atinge os limites da verdadeira inanição.
Excitados pela imperiosa necessidade de se alimentar, os instintos primários são despertados e o homem, como qualquer outro animal faminto, demonstra uma conduta mental que pode parecer das mais desconcertantes.

Querer justificar a fome do mundo como um fenômeno natural e inevitável não passa de uma técnica de mistificação para ocultar as suas verdadeiras causas que foram, no passado, o tipo de exploração colonial imposto à maioria dos povos do mundo, e , no presente, o neocolonialismo econômico a que estão submetidos os países de economia primária, dependentes, subdesenvolvidos, que são também países de fome.
As massas humanas se deram conta de que a fome e a miséria não são indispensáveis ao equilíbrio do mundo, e que hoje, graças aos progressos da ciência e da técnica, surgiu pela primeira vez na história um tipo de sociedade na qual a miséria pode ser suprimida e com ela a fome. (Fonte:Josué de Castro - PDF)



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